Já não podíamos mais. As notícias de Portugal eram mais do que boas, o emprego aumentara, a economia crescera e o turismo também. E depois havia sempre a saudade, a saudade a dormir connosco, a partilhar a casa e as vidas connosco, a saudade que não nos deixa dormir, não deixa pensar, só sentir saudade da tua mãe, do teu pai, da minha casa, da praia, de Lisboa, da saudade, um abraço da minha mãe tão apertado, as lágrimas quentes a cair cara abaixo.
Fiz as malas, despedi-me e tu vieste atrás de mim. “Espero que saibas o que estás a fazer”, disseste, e eu sabia, de dedo em riste a apontar para as notícias, a apontar para os números, e tu atrás de mim, como sempre, o homem vai sempre à frente a desbravar caminho, talvez por se achar importante, maior do que os homens e, portanto, eterno, inesquecível.
Chegámos a Portugal e foi uma festa, o sol, o calor, o jantar todos juntos entre amigos e família, mais parecia que nos casávamos outra vez entre votos de felicidades, beijos e abraços, sem esquecer o regresso à praia, ao mar, a Lisboa, ao Tejo, como se tivéssemos partido há dez anos (e partimos), secos de saudade, secos de tudo, sequiosos, a querer ver tudo no mesmo sítio com os próprios olhos outra e outra vez, sem esquecer os cafés no café ao pé de casa e as boas-vindas dos vizinhos e conhecidos nos sorrisos e apertos de mão.
É bom estar de volta a casa, dizíamos e respirávamos de alívio, sãos e salvos, ainda incrédulos, mas acordados, de um pesadelo demasiado longe, demasiado longo e sem fim à vista, até agora. Abrimos os olhos e ainda nos custa a crer, o cheiro do sal, o dançar das ondas nos ouvidos pela manhã ao despertar, o calor a fazer festinhas na pele à varanda, o Bugio, uma ginjinha ao fim da tarde, a música a tocar, a vida feita para se viver.
O pior foi depois. Com dinheiro para um ano rapidamente nos vimos com dinheiro para seis meses, ou não fosse o meu irmão precisar, o amigo que precisa, o Natal que precisa, aquele fim-de-semana em Montargil, a tua irmã grávida outra vez. E quanto ao emprego prometido nas notícias e televisão nem vê-lo, de volta às filas intermináveis às seis da manhã no Centro de Emprego e Segurança Social, e trabalho até há, mas para licenciados só pelo ordenado mínimo e por fora, sem contrato, sem direitos, apenas o direito a trabalhar de cabeça baixa e sem levantar a grimpa, que amanhã também é preciso ganhar, a distribuir panfletos, a vender porta-a-porta, a atender telefones, a servir às mesas, 12 horas por dia, 14 horas por dia, 16 horas por dia e ainda tenho de pagar o passe mais duas horas na ponte para cada lado, o saco com comida que os teus pais nos mandam ao fim-de-semana, pedir dinheiro à minha mãe e o mês nem a meio, pedir comida à minha irmã e o mês sem chegar ao fim, pedir por favor e pedir emprestado, e se foi para isto que voltámos para Portugal então se calhar não vale assim tanto a pena, tu continuas à procura de trabalho mas já és velha para trabalhar, mau grado os 40 anos, e quando o Costa dizia aos jovens para voltar convinha ter em conta como os jovens já não são jovens, são profissionais com vários anos de experiência, e experiência lá fora, noutras línguas e noutros mundos, com outras aprendizagens e novos desafios, desafios tão necessários a Portugal como a água da chuva.
Mas não, e eu também não caminho para novo, e apesar do tempo todo lá fora, e por causa do tempo todo lá fora, não conhecemos ninguém, já não conhecemos ninguém, não podemos pedir favores a ninguém, cunhas a ninguém e, portanto, continuamos na mesma, tu desempregada, e eu como a lesma.
Entretanto fartámo-nos e entretanto, entre esperas e mais não sei o quê, pedimos mais algum dinheiro aos teus pais e à minha avó, tal como há dez anos, e tal como há dez anos emigrámos e voltámos onde estamos hoje e de onde nunca devíamos ter saído, e não, eu não sabia o que estava a fazer, e sim, Portugal está na mesma, melhor só para quem pode mas nem por isso para quem quer.
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Texto de João André Costa • 08/01/2018 - http://p3.publico.pt/actualidade/sociedade/25288/regressamos-portugal